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sábado, 24 de fevereiro de 2024

Metaficção da guerra

Michelangelo

Século XXI,19/04/2023, abre-se o grande portal, seria o Armagedon, a pequena cidade em Israel? Eles não sabem, os humanos, onde estarão deuses e demônios. Perséfone atravessa os rios de Hades, alcança continentes, quantas perséfones? Quantos hades? A sociedade vivendo sua própria crueldade, a mão de Deus não toca nada, todos estão ao deus dará, sina ou sorte, quem de seu quinhão saberá? Estão em confronto o bem e o mal? Não. Indigna-se, moço, ambos já se alojaram nos corpos, nas mentes, nas almas, nos corações, alimentando-nos ou nos retroalimentando. A guerra, mísseis e bombardeios. Deus não está morto, morreu a paz. A paz acordada adormeceu em todas as gerações, nações. Pandemia foi nada, moço. Aviso. Aquieta. Nos mísseis, agora verbais, somos todos condenáveis, por que julga? Abriram os portais, mas o de abril, ah, esse ninguém viu que abril, foi o mal, seu moço. O senhor está vendo? Acabou a Palestina? Ela mora dentro da gente, a dor, dói, remói, lá, moço, se oriente. Vem mais, a natureza humana, moço, mudou tudo, tornado, terremoto, sol de fogo, avalanche, o fim é nada, o fim é cíclico, o sofrimento não, vejo expiação, o juízo, moço, juízo final é não ter juízo, morrer vivo no erro, é castigo. Acredite moço, procure a Leitura dos Atos dos Apóstolos, leitura do dia no Vatican News. Se dominado pelo pecado da preguiça, some a data do finado mês de abril. Deus não está morto, moço, está em guerra.

 

sábado, 20 de janeiro de 2024

Como o escritor mata o inimigo

A sangue frio, coloca seu nome nos versos, enquanto rasga seu corpo em pedaços, cortando parte por parte com um pincel de ponta fina e precisa. Reserva uma parte do corpo na geladeira e a outra deixa separada para fazer feitiço para que nunca mais seus fantasmas assombrem. Após alguns meses de frieza, retira alguns órgãos predestinados à dissecação e exame patológico, buscando encontrar a raiz de toda a desumanidade. Estômago e intestino são os iniciais, ligados às emoções cruciais. Em seguida, vem o coração. Este deve pulsar ainda dentro dos punhos fechados como um sacrifício aos deuses e às deusas, para fazer derramar todo o sangue sobre o Totem que irá purificar a sua existência bestial, retirar a Marca de Caim que o acompanha por gerações e o torna vítima de sua própria maldade. Por fim, a boca e a língua são colocadas num frasco de vidro – daqueles usados em laboratórios – que mantenha uma boa refrigeração e flexibilidade, o frasco deve ser lacrado  e etiquetado com o último verso. Assim o silêncio impera sobre todo mal que lhe sai pela boca. Assine sua petição de defesa:

Eu, poeta, venho respeitosamente, perante Vossa Excelência, por seu Representante Legal, apresentar minha defesa prévia pelas razões de fatos e fundamentos a seguir expostos.

Como poeta, reservo-me o direito de matar a sangue frio todo aquele que se declare meu inimigo. Alegando não haver sangue, nem morte, meramente versos ou prosa ficcional que não se caracteriza por nenhuma prova concreta.

A arte em si aniquila seus desafetos.

 




quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

E a carne se fez verbo

Leonardo da Vinci

Lavei as roupas guardadas no baú da sala de visita. Camisas, vestidos, shorts, saias, calças, para todos os gêneros, para toda espécie de visita. A vitrola rodava o som de lamento do Tim Maia, enquanto eu tomava banho num chuveiro ralo e frio, talvez para esfriar algumas ideias sobre minha morte súbita. Sim. Seria um final silencioso e vazio, como a vida que tenho vivido ultimamente, sem diálogos profundos, sem acolhimentos, sem perspectivas. Uma cigana me falou uma vez que eu iria morrer no ostracismo, ela queria ler minha mão e fechei o punho com força, estendendo o braço num ato quase violento. Praga. Ainda vivo, mas não sei se estou viva ou morta, uma morta que ainda respira. Respira a dor da humanidade que me domina corpo e alma; respira o som inócuo do ser humano indiferente à minha existência; respira o efeito de toda a maldade humana, o desprezo, o sarcasmo, o perjúrio, a injúria, a difamação, o desamor. Ainda estou debaixo da água do chuveiro, e tento respirar. O sangue vai minando dos pulsos, a batida do coração vai desacelerando. Ainda quero viver, mas o impulso de morte foi maior, o poder cruel da humanidade foi mais forte sobre a outra pulsação, sobre o desejo de viver. Ainda penso que amo a vida, pareço estar arrependida dos cortes, mas cada gota de sangue que sai do meu corpo é uma cicatriz que se esvai, a dor da morte é menor do que as feridas abertas da vida. Nada mais vai mudar nesta vida. Não há esperança de socorro, ninguém vai tocar a campainha. Quando meu corpo frio estendido no chão do banheiro for encontrado, ao menos o baú de roupas estará disponível na sala, para todas as espécies de pessoas, para todos os gêneros, sem nenhuma exclusão. Na minha lápide quero o escrito: o amor morreu neste pequeno mundo.

domingo, 10 de dezembro de 2023

O Sentido do Natal na Pele


Ela andava sozinha pela cidade, levava uma bolsa, um batom e um sobretudo preto caído sobre o braço direito. Caminhava lentamente, cada passo ritmado pelas gotas que brotavam da sua face negra como a noite. Sua bolsa portava os mistérios de uma vida de mártir. Um passo, lágrima, dez passos e os transeuntes já notam seu choro compulsivo, que era acompanhado por soluços contidos. Muitos pensamentos forasteiros: “talvez esteja de luto”, “talvez seja recém separada”, “ela deve estar com dores”, “será que foi assaltada?”. As pessoas pensam sobre as outras o que deixam de pensar sobre elas mesmas. Somos tomados de assalto pela vida, isto nos aflige ou excita, mas sempre nos expõe ao improviso. Bárbara não ensaiou sua saída de casa, quando recebeu a mensagem encontrava-se na rua, enredou-se nos acontecimentos posteriores. Olhava no céu apenas a sua parte branca, as nuvens podiam ser algodões, carneirinhos, ovelhas ou um tom de pele da qual ela jamais se beneficiaria. Mas por quê a atendente da loja a chamou de preta-pobre tão gratuitamente, se não tivesse pagado o produto ela ainda não teria tal direito. Sim, direito. Ela cometeu um crime, e ficou por isso mesmo, quem saiu humilhada da loja foi Bárbara, ainda com as roupas novas. Pagou pela humilhação e só se deu conta depois. Será que a classe social realmente supera o racismo? A dor em Bárbara permaneceu, nada mudou, sentiu-se até pior. Bárbara é sozinha no mundo, foi se dar um presente na noite de Natal. Famílias reunidas, casas cheias, músicas natalinas, mesas fartas. Bárbara foi ao seu quarto, vestiu um dos vestidos, o vermelho como o sangue que corre em todas as veias. Era Natal e ela não estava apenas solitária, mas novamente ferida pela racialidade que domina o coração da humanidade. Bárbara pensou neste dia como uma grande fantasia, talvez devesse reclamar com Papai Noel.